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Edward Gorey um dia disse: «Eu sou uma pessoa antes de qualquer outra coisa. Eu nunca digo que sou um escritor. Eu nunca digo que sou um artista… Eu sou uma pessoa que faz essas coisas».
Escritor, ilustrador, designer, figurinista, cenógrafo. São várias as áreas artísticas em que Gorey se destacou, mas nenhuma delas foi ampla o suficiente para conter toda a extensão da sua criatividade. Um ser humano que apesar de nunca ter mostrado interesse pelo amor romântico, foi amante de vários interesses, tendo-se rodeado em vida daquilo que o sanava do tédio da existência: gatos, antiguidades e livros. Leitor auto-didata desde os três anos e meio, Edward Gorey lia compulsivamente, muitas das vezes múltiplos títulos em simultâneo. Até à data da sua morte, tinha um impressionante acervo de cerca de 25 000 livros que inundavam a sua casa — à qual se referia como Elephant House —, postumamente convertida num museu em sua homenagem.
Neste dia que marca o aniversário do autor norte-americano, relembramos a personalidade e o seu distinto legado a tinta preta.
Nascido a 22 de fevereiro de 1925 em Chicago, Gorey publicou 116 livros ao longo dos seus 75 anos de vida (alguns dos quais sob diferentes pseudónimos e a sua maioria no feminino). Apesar do seu espantoso e fecundo contributo nos campos da Literatura e da Ilustração, é importante salientar que a herança cultural deixada pelo autor — que viria a tornar-se uma referência ímpar durante a segunda metade do século XX, bem como um clássico intemporal aos olhos da atualidade — vai muito além do que foi possível imortalizar em papel.
Edward Gorey diz ter começado a desenhar no mesmo momento em que aprendeu a segurar num lápis. Embora tenha sido nessa área que exerceu a maior parte da sua atividade profissional, a verdade é que a sua formação académica em Arte se resume apenas a um semestre em 1943 no Instituto de Arte de Chicago, até servir no exército durante a Segunda Guerra Mundial. Sete anos mais tarde, formou-se em Francês pela Universidade de Harvard.
Notabilizou-se como ilustrador no início da década de 50 pelo caráter surrealista e estética anacrónica dos seus desenhos, com reminiscências de outros tempos (caraterística que levou vários leitores a especular sobre a sua identidade e a pensar que se tratava de um autor do século XIX). Desenhou centenas de capas para livros de outros autores, ilustrou incontáveis livros infantis e publicou as suas próprias histórias. Entre as suas conquistas mais notáveis, conta-se um prémio Tony de Melhor Figurino pelo seu trabalho na produção de Dracula para a Broadway, bem como uma nomeação para Melhor Cenário.
O trabalho de Gorey sedimentou-se no campo da ilustração infanto-juvenil desde cedo, mas esse não era o universo ao qual sentisse pertencer por completo. A visão singular que possuía sobre a Ilustração, claramente refletida no seu registo gráfico e nas temáticas para as quais gravitava, não encaixava no molde pré-existente. Esta ausência de um lugar para acolher a singularidade de Gorey, tanto físico como concetual, surgia como um ponto de interrogação, não apenas para uma franja do público — que via a sua obra como imprópria para crianças — mas também para as próprias editoras — que não sabiam ao certo como a categorizar.
Uma das suas obras mais conhecidas, The Gashlycrumb Tinies (1963), é um perfeito exemplo disso mesmo. Concebido na mente do autor como um livro infantil, foi considerado demasiado perturbador para ser editado como tal. Este álbum ilustrado que retrata a morte precoce e absurda de 26 crianças imaginárias a partir de rimas, em que cada uma corresponde a uma letra do alfabeto, acabou por ser publicado, mas fora dessa categoria. Já Beastly Baby (1962) — um dos seus primeiros livros, que passou uma década na gaveta até ver a luz do dia — não foi tão afortunado, tendo sido rejeitado por várias editoras até Edward Gorey o publicar de forma independente (e sob o pseudónimo Ogdred Weary).
Os seus desenhos não eram “felizes”: retratavam situações absurdas, e por vezes perturbadoras, em cenários onde a escuridão abundava e o humano delgado de semblante ora ambíguo, ora amedrontado, convivia com sinistras criaturas. Mas também existia luz nas ilustrações de Gorey, que tinha uma capacidade única para contrabalançar o obscuro com um sentido de humor invulgar, apelando a públicos de várias idades. O próprio caracterizava o seu trabalho como literary nonsense — para Gorey, algo que não fizesse sentido tinha que ser inevitavelmente macabro, e fazia suas as palavras de Schubert: «não existe música feliz»*.
*«If you’re doing nonsense it has to be rather awful, because there’d be no point. I’m trying to think if there’s sunny nonsense. Sunny, funny nonsense for children — oh, how boring, boring, boring. As Schubert said, there is no happy music. And that’s true, there really isn’t. And there’s probably no happy nonsense, either.»
Ascending Peculiarity: Edward Gorey on Edward Gorey: Interviews (2001)
Gorey rapidamente se tornou uma figura de culto e conquistou uma legião de fãs que se continua a expandir até aos dias de hoje. O seu mundo ilustrado aliado à sua personalidade misteriosa e reservada constituiu um terreno fértil para a criação de mitos em torno do autor. Numa entrevista com Dick Cavett em 1977 — a sua estreia em televisão — são mencionados alguns dos rumores que ecoavam no imaginário Gorey na altura (havia quem dissesse que o autor «não existia ou vivia num submarino abandonado, que só saía de noite e usava uma capa para todo o lado», entre outras mirabolâncias). Ninguém vestia melhor a sua obra do que o próprio.
Edward Gorey deixa ao mundo uma obra condicente com a sua personalidade: críptica, magnética e sem paralelo. Era um criador por natureza — quando não se encontrava entre letras e desenhos, tricotava, fazia brinquedos e esculturas em cerâmica. No tempo que parecia conseguir esticar até ao infinito, mantinha seis a sete gatos ao seu cuidado e era um espectador assíduo de ballet. Polivalente nos seus interesses e dotado de um gosto considerado peculiar pelos seus amigos mais próximos, Gorey tinha um fascínio por elefantes, longos casacos de pêlo e cinema mudo. Buffy: A Caçadora de Vampiros e X-Files também ocupavam um lugar especial no seu coração.
Edward Gorey foi muitas coisas, entre elas um exímio malabarista de palavras. Para deleite dos seus leitores, os seus truques nunca procuravam deixar a plateia confortável. Pelo contrário, “confortável” nunca fez parte do seu número. E é a esse fantástico espetáculo que devemos a sua obra.
«My mission in life is to make everybody as uneasy as possible. I think we should all be as uneasy as possible, because that’s what the world is like.»
Ascending Peculiarity: Edward Gorey on Edward Gorey: Interviews (2001)
Sugestões de leitura
Livros de Edward Gorey (se os conseguirem agarrar):
The Doubtful Guest (1957)
The Gashlycrumb Tinies (1963)
The Disrespectful Summons (1971)
Livros sobre o autor:
Ascending Peculiarity: Edward Gorey on Edward Gorey (2001)
Born to Be Posthumous, Mark Dery (2018)
Sugestões audiovisuais
Dick Cavett interviews Edward Gorey (30 de novembro de 1977)